Social-democracia: consolidação e três mortes

É preciso acabar com as ilusões sobre a social-democracia como alternativa, analisar e denunciar seus imensos limites na atualidade e no passado.

Foto: ilustrativa

Na atualidade é comum encontrarmos leituras, escutarmos nas mídias e aceitar todo e qualquer tipo de referência/propaganda positiva sobre a tão aclamada social-democracia, os partidos que reivindicam esse nome e aqueles que possuem ou “social” ou “democracia” no nome reivindicando uma herança ou ser uma vertente da social-democracia. Nessa curta apresentação quero trazer ao debate elementos da trajetória histórico-concreta que compuseram a consolidação da social-democracia enquanto corrente política a partir de três fatos que considero centrais nesse processo, ressalto que existem outros elementos para além de minhas exemplificações que também alimentaram essa consolidação em conjunto do que irei destacar aqui.

Minhas colocações a partir desses três pontos tentam simbolizar expressões concretas e fundamentais de como a sociail-democracia pode e deve ser analisada ao longo de todo o seu processo histórico de formação e desenvolvimento, levantar novos debates com base de análise crítica da ruína de suas atuações na contemporaneidade e ruína de sua totalidade como resposta alternativa de projeto político mundial por uma outra sociabilidade.

Para começar é importante fazer um breve resgate das origens da social-democracia, que surge da metade para o final do século XIX na Europa Ocidental, isso depois de um período de grandes rebeliões por todo o continente impulsionados por uma ampla difusão do marxismo no interior das classes operárias, e é de dentro dessa mesma classe então que se organizam os primeiros partidos com essa denominação. Os partidos sociais-democratas nascem com orientações revolucionárias baseados no pensamento marxista em conjunto a deliberações de tarefas democráticas, para que além da disputa pelas ruas o movimento operário fizesse a disputa por dentro das instituições burguesas, com o passar dos anos se consolidou na Alemanha o maior partido social-democrata da Europa, onde foi possível através do mesmo ocupar-se diversos cargos dentro do parlamento alemão e que por meio da Segunda Internacional dos Trabalhadores serviria de base aos demais partidos sociais-democratas criados no continente.

A social-democracia e em especial a alemã por seu tamanho enquanto partido organizado e sua  grande “representatividade” parlamentar, era a vanguarda do movimento operário internacional, após fundação da Segunda Internacional dos Trabalhadores em 1889 e a morte de Engels em 1895, o principal dirigente teórico da organização era Karl Kautsky, que até então se declarava um teórico e seguidor do marxismo. É a partir da orientação de Kautsky como dirigente que quero abrir o primeiro ponto ou a primeira morte da qual a social-democracia necessitou para iniciar seu processo de consolidação como a corrente política que conhecemos hoje.

 

1- A primeira morte a qual social-democracia comandada por Kautsky foi responsável é a morte da organização enquanto corrente revolucionária do movimento operário de base marxista. Através de inúmeras deturpações do marxismo, através de um revisionismo das obras de Marx e Engels, de um oportunismo, um comodismo reformista e ilusório do qual de dentro do parlamento, através de pequenas reformas (de grão em grão a galinha enchendo o papo) e das institucionalidades se poderia chegar ao socialismo. Kautsky de forma rasteira “mata” o programa revolucionário de orientação marxista (o qual ele conhecia muito bem, tendo em vista que conviveu e dialogou tanto com Marx, quanto com Engels), de dentro da social-democracia alemã e da Segunda Internacional dos Trabalhadores negando a ruptura revolucionária como fundamental, que desde o “Manifesto do Partido Comunista” de 1848 sempre foi difundida e colocada como central por Marx e Engels;

 

Posteriormente Lênin “fecharia a tampa deste caixão” ao romper de vez com a Segunda Internacional sob a linha social-democrata, a ruptura acertada de Lênin não se dá somente pelos fatos citados acima, pois mesmo com essa “morte lenta” da orientação revolucionária marxista de dentro dos partidos e o esvaziamento da corrente política original de luta pelo socialismo científico, Lênin se mantinha organizado no Partido Social-democrata Russo e na Segunda Internacional, disputando o movimento pela ala Bolchevique, e combatendo as deturpações kautskyanas. Porém a segunda morte pela social-democracia a torna responsável mesmo que indiretamente por milhares de mortos e é o motivo fundamental da ruptura de Lênin com a mesma.                       

 

2- A segunda morte vem no início da Primeira Guerra Mundial, guerra já identificada por Lênin e outros revolucionários como guerra imperialista, por tanto seria óbvio que os partidos sociais-democratas orientados pela Segunda Internacional se posicionassem contra a guerra e contra cada uma de suas burguesias, tensionando as contradições entre as classes trabalhadoras de cada país e suas burguesias nacionais durante esse período. Mas surpreendentemente não foi assim, Kautsky entre outros dirigentes guiaram o posicionamento da social-democracia alemã na votação do parlamento pelos créditos de guerra, votando em favor da guerra imperialista e assim fizeram em maioria os sociais-democratas da França, da Inglaterra, da Bélgica e dos demais países. Se posicionar contra a guerra dificilmente a evitaria, mas evitaria o envolvimento de milhares de proletários pela Europa que perderam suas vidas pelos interesses das burguesias em disputa, concretizando nesse momento a ruptura de Lênin e uma série de outros revolucionários com a Segunda Internacional, agora já completamente corrompida por desvios chauvinistas abraçando suas burguesias imperialistas;

 

Entre os revolucionários e revolucionárias que também combatiam de dentro dos partidos sociais-democratas e da Segunda Internacional o revisionismo, o reformismo e o chauvinismo, optando também pela ruptura pós votação em apoio a Primeira Guerra Mundial, estava Rosa Luxemburgo. Rosa era conhecida como a “águia da revolução” por ser uma brilhante e fiel marxista, uma mulher dirigente, teórica e militante incansável pela revolução socialista e é em sua figura que temos a terceira morte.

 

3- A terceira morte se torna necessária para social-democracia depois da vitoriosa revolução russa dos bolcheviques de 1917, o movimento revolucionário ganhava um novo fôlego, a luta pelo fim da guerra avançava e o movimento operário internacional via nascer sua primeira revolução em marcha a sociedade comunista, nascimento esse que só se pode ocorrer através da ruptura concreta com a sociedade burguesa, isso comprovado historicamente não só por Lênin e os bolcheviques, mas também por todas as revoluções socialistas ocorridas no mundo. Essa forma legítima de ruptura ameaçava então o cômodo lugar no qual havia se estabilizado o principal partido social-democrata, o partido social-democrata da Alemanha, que já havia muito claramente dado sua guinada à direita e se tornado apenas mais um partido da ordem, e para que assim continuasse tornou-se uma força contra-revolucionária. Rosa Luxemburgo os combatia e combatia a burguesia alemã organizando novos movimentos de luta pelas classes trabalhadoras, em 15 de janeiro de 1919 era assassinada por militares direitistas em aliança com a social-democracia alemã, Waldemar Pabst um oficial nacionalista e principal cabeça do plano de execução foi acolhido pelos parlamentares sociais-democratas da Alemanha e este mesmo homem mais tarde se juntaria ao nazismo;

 

A Social-democracia que engatinhou em seu nascimento apoiada no marxismo, cresceu no seio do movimento operário, movimento que clamava e ainda clama pela transformação socialista da realidade concreta, negou suas origens para iniciar sua consolidação enquanto corrente política descolada da luta revolucionária e para isso matou mais de uma vez. Precisou matar a orientação marxista dentro de si, que significa matar não só o legado de Marx e Engels enquanto teóricos, mas também o seu legado de práxis, de comprometimento com a luta dos trabalhadores e trabalhadoras do mundo pela ruptura com a sociedade burguesa e a abolição da sociedade dividida em classes. Decidiu pelo alinhamento com cada uma de suas respectivas burguesias nacionais, enterrando a Segunda Internacional dos Trabalhadores e mandando milhões em direção da morte na Primeira Guerra Mundial, por tanto tornando-se uma corrente incapaz de guiar e orientar os povos explorados e oprimidos pelo fim do capitalismo, pelo fim da exploração do homem pelo homem e de combate ao imperialismo sangrento como forma de dominação internacional. Por último decidiu matar uma Rosa que florescia no coração de milhares de homens e mulheres na Alemanha e na Europa, Rosa que semeava a retomada da luta revolucionária comunista junto e em apoio a Lênin e os bolcheviques, luta traída, deturpada e abandonada pelos sociais-democratas da época e do agora.

A social-democracia foi muito bem definida em 1981 pelo grande camarada João Amazonas no título de sua obra: “A Social-Democracia, Instrumento do Capitalismo”, é preciso acabar com as ilusões sobre a social-democracia como alternativa, analisar e denunciar seus imensos limites na atualidade e no passado, principalmente seu papel decisivo histórico-contemporâneo de alinhamento ao neoliberalismo e ao imperialismo como instrumentos de dominação de classes na forma nacional e internacional, como isso é parte fundamental dos processos de crises e aprofundamento das condições brasileiras e latino-americanas enquanto país e região periférica de capitalismo dependente e de superexploração do trabalho.

 

*Texto de Vitor H. Ferreira, colunista do O Partisano, Voz da Resistência e do site Argentino Agitación.

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